Em sua última entrevista, García Márquez diz que fama quase o "arruinou"
O jornal "La Vanguardia", de Barcelona,
republicou nesta sexta-feira (18) o que seria a última entrevista
concedida pelo escritor Gabriel García Márquez, divulgada pela
publicação espanhola em fevereiro de 2006 e na qual o colombiano disse
que a fama quase "arruinou" sua vida.
García Márquez morreu na quinta-feira (17), aos 87 anos, no México. A entrevista do "La Vanguardia" foi feita no final de 2005, mas publicada alguns meses depois.
O Prêmio Nobel
disse na ocasião que a fama tinha poucos atrativos para ele: "te
condena à solidão, gera um problema de comunicação que te isola".
García Márquez contou ainda que 2005 estava sendo um "ano sabático":
"Não me sentei diante do computador. Não escrevi uma linha. E, além
disso, não tenho projeto nem perspectivas de fazer isso. Nunca tinha
deixado de escrever, este foi o primeiro ano da minha vida em que não
fiz isso", disse o escritor.
"Eu trabalhava a cada dia, das nove da manhã até às três da tarde, dizia que era para manter o braço aquecido, mas na realidade era porque não sabia o que fazer de manhã", afirmou García Márquez.
Sobre o tempo livre
que ganhou, o escritor revelou: "Encontrei uma coisa fantástica, ficar
na cama lendo. Leio todos aqueles livros que nunca tive tempo para ler.
Lembro que antes sofria um grande desconcerto quando, pelo que fosse,
não escrevia. Tinha que inventar alguma atividade para poder ficar até
às três da tarde, para distrair a angústia. Mas agora me é prazeroso".
O autor
da entrevista citou na matéria que durante a entrevista o telefone
tocou e o escritor previu: "com certeza é Carmen Balcells". E de fato
era a agente literária de García Márquez.
"Está vendo? Não tem sossego. Nada escapa dela, sabia que estava falando com vocês. Estamos mais controlados do que nunca", brincou o escritor.
A matéria do "La Vanguardia" lembrou então que a relação profissional de Balcells com García Márquez se remonta
a 1961, quando ninguém acreditava no jovem escritor, que só ficaria
famoso depois da publicação de "Cem Anos de Solidão", em 1967.
O
escritor também recordou o tempo em que viveu em Barcelona, do final de
1967 até 1975, e onde escreveu "O Outono do Patriarca".
Vida e Obra
Considerado o escritor de língua espanhola
mais popular desde Miguel de Cervantes, no século 17, García Márquez
alcançou celebridade literária que gerou comparações com clássicos das
letras universais como Mark Twain e Charles Dickens. Suas obras
ficcionais extravagantes e melancólicas --entre elas "Crônica de uma
Morte Anunciada", "O Amor nos Tempos do Cólera" e "Outono do
Patriarca"-- superaram em vendas qualquer outra publicação em língua
espanhola, com exceção da Bíblia.
O romance épico "Cem Anos de Solidão" vendeu mais de 50 milhões de
cópias em mais de 25 idiomas. Publicado em 1967, é um dos exemplos
principais do chamado realismo fantástico e marcou um boom da literatura
latino americana que durou duas décadas. A obra
narra a saga de gerações da família Buendí e foi "o primeiro romance em
que os latino-americanos se reconheceram, que os definiu, que celebrou
sua paixão, sua intensidade, sua espiritualidade e superstição, sua
grande propensão ao fracasso", disse o biógrafo Gerald Martin à agência
Associated Press.
Ao receber o Nobel, em 1982, García Márquez
descreveu a América Latina como uma "fonte de criatividade insaciável,
cheia de tristeza e beleza, do qual este errante e nostálgico colombiano
não é mais que uma fração, destacada pelo destino. Poetas e mendigos,
músicos e profetas, guerreiros e malandros, todas as criaturas daquela
realidade desenfreada, deixaram pouco a extrair da imaginação, porque
nosso problema crucial tem sido a falta de meios convencionais para
tornar nossa vida verossímil".
Biografia
Gabo, como era carinhosamente chamado, nasceu no dia 6 de março de
1927, em Aracataca, na Colômbia. Criado pelos pais de sua mãe, cresceu
ouvindo as histórias de seu avô, Nicolas Márquez, veterano da Guerra
Civil colombiana, enquanto sua avó, Tranquilina Iguarán, costumava lhe
contar lendas que misturavam fantasia e realidade. Essas narrativas
foram fundamentais para que mais tarde o garoto se tornasse escritor.
As histórias de seus avós se tornariam também material para a ficção de
García Márquez, e Aracataca inspirou Macondo, a vila cercada por
plantações de banana no pé das montanhas da Sierra Nevada, onde "Cem
Anos de Solidão" se passa. "Minha família me contou muitas vezes que
comecei a recontar histórias e coisas assim quase desde que nasci",
contou García Márquez em uma entrevista. "Desde que comecei a falar".
Enquanto atuava em jornais, esboçou os seus primeiros contos e uma
extensa reportagem sobre o sobrevivente de um naufrágio na costa
colombiana resultou no livro "Relato de um Náufrago", hoje tido como um
exemplo de bom jornalismo literário. Ao lado de escritores incluindo
Norman Mailer e Tom Wolfe, García Márquez também foi um pioneiro da
narrativa de não-ficção que se tornaria conhecida como New Journalism ou
Novo Jornalismo.
Pobre e esfarrapado durante grande
parte de sua vida adulta, García Márquez foi transformado por sua fama e
riqueza tardias. Um "bon vivant" com personalidade travessa, o escritor
era um anfitrião gracioso, que contava histórias longas, com animação,
para os hóspedes. Ferozmente protetor de sua imagem, uma característica
compartilhada por sua esposa, ele ocasionalmente se rendia a um
temperamento explosivo quando se sentia menosprezado ou deturpado pela
imprensa.
O homem político
Como muitos
escritores latino-americanos, García Márquez transcendeu o mundo das
letras. Desde cedo, Gabo tornou-se um herói para a esquerda
latino-americana, aliando-se cedo ao líder revolucionário cubano Fidel
Castro e criticando as intervenções violentas de Washington, do Vietnã
ao Chile. Seus textos perfilaram o ex-presidente da Venezuela, Hugo
Chávez, além de retratarem como traficantes de cocaína liderados por
Pablo Escobar abalaram o tecido social e moral de sua Colômbia natal,
sequestrando membros da elite, tema de "Notícias de um Sequestro".
A escrita de García Márquez foi constantemente informada por seus
pontos de vista esquerdistas, forjados em grande parte por um massacre
de militares a trabalhadores bananeiros em greve contra a United Fruit
Company (mais tarde, Chiquita) em 1928, perto de Aracataca. Ele também
foi muito influenciado pelo assassinato, 20 anos mais tarde, de Jorge
Eliécer Gaitán, candidato presidencial esquerdista em ascensão.
Ao
longo da vida, García Márquez recusou ofertas de postos diplomáticos e
tentativas de o lançar à presidência da Colômbia, embora tenha se
envolvido nos bastidores das negociações de paz entre o governo da
Colômbia e os rebeldes de esquerda.
Os últimos anos
Os últimos anos de vida de Gabo foram marcados por relatos sobre problemas de memória ,
que não foram confirmados oficialmente. As aparições públicas de García
Márquez também foram mais escassas, apesar de ele continuar a
socializar com amigos.
Em março deste ano, quando fez 87 anos, o
escritor foi homenageado diante da imprensa por amigos e simpatizantes,
que lhe deram bolo e flores do lado de fora de sua casa, em um bairro
de elite na Cidade do México. Na ocasião, o autor mostrou-se sorridente,
recebeu presentes e tirou fotos, mas não falou com os jornalistas. Nos
últimos anos, restringiu ao máximo suas aparições em público e
declarações por motivos de saúde.
Fonte: uol.com.br