sexta-feira, 4 de abril de 2014

Reflexão: Ao perdedor, as latinhas










Ao perdedor, as latinhas
Nem a mais visionária das mães-dinás poderia imaginar: o ofício de catador de latinhas tornou-se uma profissão como outra qualquer. Com os ecos da crise econômica se abatendo sobre todos nós, o zé-povinho precisa usar a criatividade para continuar vivo – ou, pelo menos, emitindo alguns, ainda que mínimos, sinais vitais. Resultado: à Lavoisier, o lixo metálico produzido pelas classes A, B, C e D ajuda a comprar brioches para alimentar a classe Z, aquele lumpesinato que cada vez aumenta mais de consistência e volume nas grandes e pequenas cidades do país.
Carnaval é festa esperada com ansiedade por essa nova categoria de profissionais que os IBGEs da vida ainda não catalogaram. Nada mais justo: nesse período, de alto consumo de produtos armazenados em invólucros de alumínio, tiram o pé da lama. E o que se viu por aí, pelas ruas do país, foi um aguerrido exército, sempre à espreita para catar aquela latinha que, displicentemente, alguém acabou de jogar no chão.
Não existe limitação de idade para o exercício da profissão de catador de latinhas. Também não exige formação específica, nem o ensino fundamental completo, nem rudimento de alfabetização. O básico para se tornar exímio profissional do setor é aquela condição humana que nos leva a fazer seja lá que diabo for para não virar comida de abutres.
Salvador, no Carnaval, uma das maiores usinas de geração de latinhas de cerveja e refrigerantes do planeta, é a Meca, o lugar ideal, a cidade dos sonhos de todos esses valentes profissionais que vivem das sobras do lixo ocidental: a Las Vegas deles.
Os catadores de latinhas podem ser família completa: pai, mãe e muitos filhos, todos imersos na faxina diária de coletar o maior número possível de peças de alumínio para revenda. Ao final de suada semana de trabalho, podem faturar talvez R$5, talvez R$10, o que pode parecer pouco para gente como a gente, que está na base da pirâmide invertida, também conhecida como elite. Para eles, não. Serve ao menos para adiar a morte por fome, bala ou vício.
No Carnaval de Salvador, o espaço nobre para os catadores de latinhas é aquele, virtual, criado entre a passagem de um bloco de trio e outro. Em ritmo de emboscada, espremidos entre as paredes dos prédios e a multidão que saracoteia ao redor, mergulham sem medo  no lixo alumínico recém-jogado e enchem muitos sacos com as cobiçadas peças.
Ser catador de latinhas pode parecer fácil, mas não é. O.k., não precisa de exame vestibular. Muito menos daquela série de documentos que se costuma exigir quando somos admitidos em algum emprego. Mas o exercício dessa profissão requer rapidez, agilidade, disposição física, fôlego e certo estoicismo. Afinal de contas, não deve ser muito reconfortante para o ego viver das sobras do lixo produzido por outros homens, aparentemente tão filhos de Deus quanto.
De qualquer forma, não será de todo absurdo se, da próxima vez que perguntarmos a alguma criança da periferia das metrópoles o que gostaria de ser quando crescer, ouvirmos: “Quero ser catador de latinhas, tiô!”
(Rogério Menezes, Revista Época de 19 de março de 2001)
As expressões “Ao vencedor, as batatas” e “Ao perdedor, as latinhas” permitem-nos concluir queas batatas e as latinhas garantem aos vencedores e perdedores a sobrevivência.

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